quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Pequena janela encantada

Algo está misteriosamente interessante. O caminhar daquele rapaz parece transparecer todos os pensamentos titubeantes que estão por debaixo do seu chapéu coco. O tempo nublado cooperara para que sua existência, inclusive de seus passos e seu chapéu coco, ficassem abaladamente reflexivos. Vejo passos que, inseguros, desconhecem a direção certa para seguir. Outros, um tanto quanto rápidos, acelerados, passam cegos pela paisagem de prédios sombrios e encantadores do centro. Passos que simplesmente parecem pertencer a um fantasma que não escolheu o leste ou o oeste e, ao parar, sabe que ali também poderá ser o seu lugar. Somos mutantes ou ciganos. Há algumas raízes (milhares, quem sabe) dentro de seu coração. São essas raízes chamadas de recordação que lhe fazem pertencer ao lugar, que lhe dão posse, documentação completa daquela casa. Daqueles móveis. Roupas. Tapetes. Porta-retratos. Quadros. Souvenirs. Ainda entro em uma casa, casa de interior. Não há vi vazia. Não a quero ver vazia. A quero completa. Com móveis, com cheiro, com jardim, com quadros espalhados por toda a parte, com um cachorrinho sapeca que impede a aproximação de qualquer gatinho. Com os passos do meu tio. Com sua alegria ao me ver chegar de São Paulo: “Oi QUERIDA” (caixa alta porque sua voz é baixo - 'bem grave'). Quero minha tia me oferecendo o bolo que fez especialmente para mim.  Darei uma fiscalizadinha em meu cabelo e, através do espelho daquela casinha, observar que algo em mim mudou de novo; todo ano muda e só nesse espelho posso perceber tal fato. Quero o cheiro da pamonha quando, delicadamente, eu for até a calçada e ficar em frente ao pé de ipê. Sim. Quero sempre o pé de ipê nessa minha lembrança, com suas raízes densas se libertando da calçada. Quero guardar o portão também. A cadeira de descanso. Guardar os vizinhos. Guardar o meu tio cuidando do seu carro vermelho e assobiando alguma música enquanto pensa, pensa mas não sei em quê, embora minha curiosidade por pouco não me faça perguntar. Quero estar na rodoviária e, pela janela do ônibus, vê-los me esperar ansiosos lá fora. Quero guardar a disposição dele carregando minha bagagem e rindo de mim porque, afinal, eu levo sempre uma mala só para sapatos, outra só para roupas e outra para coisinhas-inúteis-que-não-vivo-sem. Quero vê-lo colocar tudo no porta-malas enquanto minha tia fala: “Como foi a viagem, neguinha?”. Quero uma pamonha doce guardada para mim. Quero contemplá-los e, sentada bem no meio do banco detrás, contar as novidades e inspirar profundamente o vento fresco que vai carro adentro.
Quero estar feliz por ficar de férias na casa deles. Saber que vou respirar ar puro, escrever muito, tomar o café da tarde com a minha tia e saber que poderei acordar às 11 horas, já que, como ela mesma diz, eu preciso descansar muito: “Você estuda demais, Dandan”. Vou conversar com o meu tio na calçada e contemplar o pôr-do-sol. Aproveito para ficar à vontade, uso tranquilamente chinelos e shorts no portão; estou no interior e aqueles sapatos todos, os trago porque, enfim, tenho apego, mas sei que eles serão inúteis até mesmo na alta roda da cidade.
Quero ler Clarice, sabendo que ele está ali sentado ao meu lado, pensando enquanto eu leio.
Quero passar as tardes numa ociosidade tão deliciosa que meu desejo era tê-las infinitamente em minha vida, sem que nenhuma parte do cenário se modificasse. Eu ainda não tenho consciência de que esse cenário não é eterno. Vou aproveitar e fotografar tudo que vir pela frente. Ele me diz: “Você só falta fotografar mosquito... Impressionante”. Chega a noite, não importa a idade, deito na cama com minha titia e ela me conta histórias para dormir, um ritual de anos e anos; ela ainda ri por ter de me contar, às vezes, pede que eu conte. Mas gosto da sua voz, da sua entonação, da sua maneira tão perfeita de contar. Titio já sabe que o lugar dele é ocupado e vai dormir só tarde da noite quando eu me mudar, forçosamente, de quarto. Quando minha priminha estava presente, logo na primeira noite, conversávamos até altas horas. No dia seguinte, ele ria e dizia: “Nossa, como vocês falam (fingindo-se surpreso, como se não soubesse que falamos mais que o homem da cobra)!”; e nós retrucávamos: “Imagina, fomos dormir cedo!”; “Ah, sei...”; e ri com aquele ar cúmplice e satisfeito.
E eu sigo assim... Passei férias quando a época não era e era do walkman, depois diskman e depois mp4... São tantas coisas boas que passos incertos de um desconhecido me puseram a compartilhar nesta folha. Ouve só! Ele está tocando a guitarra havaiana. Como eu gosto desse som. Eu o elogio (responde que não toca nada). Modesto. Ele canta, digo que é a melhor voz, que enriquece o coral com o seu baixo, e ele, modesto mais uma vez, ou nem tanto, solta um sorriso maroto. Ei! Já são 18h09, preciso colocar meu mizuno porque titio quer caminhar e, mesmo quando faço muxoxo, insiste e é impossível dizer não - ele é teimoso, vocês não o conhecem! “Vamos caminhar, Daaani”; “Vamos lá, titio”. São 13 voltas na praça, voltinhas que, entre cumprimentar os conhecidos e sentir o finzinho do pôr do sol, me fazem sentir a sobrinha mais feliz do mundo! Daqui a pouco volto. Vou seguir meus passos agora. Um dia eles se reencontrarão, titio.

 Dani Vipo® 11/11/2010.


4 comentários:

  1. Edelite diz: Linda demais, fiquei feliz em ler suas recordações e saber que faço parte delas, momentos inesqueciveis e com certeza teremos outros mais. Beijos titia Dê.
    Ah! li todo o seu blog está lindo Dandan

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  2. oiie brigada por me seguir no meu blog
    estou te seguindo tbm adrei seu blg ^^
    add no msn katia-bonfante@hotmail.com

    http://www.katiabvc.blogspot.com/

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  3. Lí este texto maravilhoso na companhia de um delicioso chocolate quente, nossa como tá frio em Lisboa.
    Muito bom o seu texto por que por uns instantes fui transportado para um lugar quente e cheio de vida. Não que aqui não tenha vida, não, aqui tem muita vida. Mas acompanhei por uns instantes as suas férias de menina-da-capital-na-pequena-cidade-do-interior. Não estou calçando mizuno...

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  4. detalhes fazem a diferença,ótimo texto.
    descrição impecável,adorei a temática daqui.
    to te seguindo, um beijo.

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